Gosto da minha pele assim, dourada de sol
Do meu pé sujo, sujo, de andar descalça.
Sujo que não sai com um banho só, sabe?
Gosto dos cortes e das pequenas cicatrizes escondidas
Do cabelo cortado do meu jeito daquela hora que cortei
Dos dedos duros e sujos de tocar violão, de mexer com terra, brincar com gato.
Dos dentes meio tortos, caindo uns em cima dos outros em sorriso.
Gosto do vórtice em volta da pupila que se desenha no sol
Das partes meio ossudas, da cintura marcada em contraponto a molequice destrambelhada.
Do medo de escada, do gosto por precipícios,
do cheiro de folha, meio encrustado atrás da orelha,
dessa mania de olhar o contorno das coisas, e guardar o cheiro dos dias , dos cabelos
e do pezinho da nuca, cheirar sovaco,
lamber sorrisos, beijar nariz, de sentir nostalgia antecipada,
chorar em briga, não saber falar de amor,
de gostar de sofrer, de não querer mais fugir,
de gostar de fazer e desfazer malas, de ir embora e voltar,
desse soluço na beirada do estômago
que me pega quando tenho coragem,
quando desisto de sentir falta do que não tive,
e vou.
Todo fim de ano eu escrevo um texto pra lá de piegas. É quase uma necessidade, essa coisa de agradecer a própria sobrevivência, os (in)felizes encontros, os cortes no joelho, a propensa depressão seguida de renascimento. Hesitei muito em escrevê-lo este ano. Pelo fim-passagem em si, inédito, esquisito, machucado, todo solidão amarga de saudade e desentendimento. Vontade de gritar pra fazer-se entender, fuga, abandono, silêncio de dias e mais dias que ainda estão.
Esse ano me assombrava antes de começar. Eu o temo, de tão diversas maneiras, que nem no final acho que me farei entender. 2013 - arrasto, 2014 – pavor. Mas no arrasto me fiz encontrar, conhecer, apaixonar, reconhecer. Então uma faísca de todo o medo, que anseia mudança, amanhã, vem logo!, também se anima.
Arrumando minhas coisas hoje, encontrei um bloquinho de programas do TCC do Jota. Abri e, como todas as vezes, fiquei abobalhada, chorando com aquele “agradeço as malas feitas e desfeitas, que fizeram de mim o que sou”. Nunca achei uma epígrafe melhor pra meu viver em São Paulo que isso. Sobre o mudar-se, ir embora, o acreditar, mudar de novo, e de novo e de novo, todas as pequenas malas de semanas e mês, de deslumbramentos e sonhos remodelados, malas de além-continente, além-mar, de planejamentos desfeitos, famílias criadas e recriadas.
Meu peito doeu. Literalmente. Às vezes acontece. E sabia que precisava escrever. Piegas, desabado, escancarado, o que fosse, era preciso escrever.
Porque 2013 virou tudo do avesso-certo, se assim podemos achar/chamar um certo.
E era preciso honrá-lo e agradecê-lo, dentro de todo peso, arrastamento, dificuldade, ao menos (e tanto, e quanto!) pelas boas companhias (re) encontradas.
Quando eu tive a ideia do Caixinhas, numa madrugada malfadada de álcool e discussões perturbadoras, eu sabia que era o momento de me reconciliar com minhas lembranças e entendê-las como tal. Conforme organizava uma espécie de dramaturgia daquilo, desci por várias escadas até salas úmidas, abrindo caixas, fuçando cartas e bilhetes esquecidos, buscando uma forma de contar aquela história. Minha cabeça virou um alvoroço de lembranças. Poemas, estranhas declarações de amor, pedidos desesperados de segunda (terceira, quarta...) chance. Relacionamentos imaginários, noite de balões, de cafés, de vômito, de gozo, golpes de confiança quebrada, amizades escancaradas. Sentir-se importante pra alguém - “Creio que sou uma pessoa melhor junto com pessoas semelhantes a você.” Coisas sobre estrelas, sobre o mar, sobre neblina, sobre saudade, e a incapacidade de relacionar-se. Amargo-desespero, solidão, encontrar-se no outro e perder-se, cheiro de álcool às 7 da manhã. Sobre descobrir-se forte e salvar-se, na falta de qualquer outra pessoa que possa fazê-lo por você. Brilho no caos, um girassol da cor de seu cabelo, malas refeitas, ladeiras e chuva. Uma porção de adeuses.
O grande barato de fazê-lo, no entanto, como muito do que aconteceu nos últimos meses de 2013, era a simultaneidade desse passado revisto - histórias sendo contadas, partilhadas - com o conhecer, apaixonar, criar das pessoas que surgiram e fizeram a ideia parecer possível. Cenários desenhados, cartas recortadas, explicações de setlist com o encartar-se com o Relampiandos, o igualar-se na pieguice-pra-não-voltar com o Jota, o fervilhar de ideias comuns e o criar junto com a Priscila e o Caio, rompendo com o não-consigo-fazer-isso-de-improvisar, um misto de admiração e amizade e acolher e sentir-se acolhida, a ressignificação de músicas e o reencontrar mútuo do Clube, e as madrugadas adentro de tocar e fascinar-se, apaixonar-se, fazer-se acreditar.
Essa coisa do “onde você esteve todo esse tempo?” e “por que diabos eu não vi vocês? Não fui ver tal peça, bati em tal porta, fiz tal coisa que podia nos encontrar?” com um conhecer-se quase voraz, entregue, apaixonado. Devorávamos convivência. Encontramo-nos por um acreditar comum, um lutar compartilhado. Talvez se deva a isso nosso encantamento primordial. Num dia nunca tínhamos nos enxergado, no outro batíamos boca lado a lado e dividíamos barracas, cobertores e arroz com legumes.
Entender o amor, o dividir, o repartir-se. Já não temo, abro-me. Todo um coração aberto. Sou toda sentimentos confusos, dispersos, despejados. Derramo-me sobre você, sobre outros e quem vai chegar.
A raposa se apaixonou por um escorpião, pela náusea, pelo cheiro de tinta, pelo trôpego de suas pernas, pelos sorrisos despertados, pela embriaguez de quase morte instantânea que nunca é tudo isso, pelos adeuses de si mesma - ou dos pedaços de si desencontrados - por um boneco de fita crepe, pelos olhos marejados, pelo acreditar dos outros nela que fazia tudo tão possível, por tanta coisa dentro e fora de si, que não saberia dizer.